Doentes de amor, os homens guerreiam no oeste brasileiro
Nos cinemas, Oeste Outra Vez, de Erico Rassi, retrata a disputa implacável entre dois homens pelo amor da mesma mulher

Se as histórias do velho oeste fossem um pouco mais próximas da realidade, provavelmente estariam muito longe do glamour pintado por Hollywood. E, se fossem adaptadas ao contexto brasileiro, a imagem seria ainda mais sombria. É nessa direção que segue a premissa de Oeste Outra Vez, de Erico Rassi, que estreou nos cinemas no fim de março. O longa, vencedor do Kikito no Festival de Gramado de 2024, justifica a atenção e os elogios que vem recebendo, especialmente pela inteligência do roteiro, que consegue, ao mesmo tempo, traçar um retrato contundente do machismo e se conectar com sua principal inspiração: os filmes de faroeste americanos, mas com uma boa dose de desgraça brasileira.

O diretor estabelece a atmosfera do filme já nos primeiros instantes, explorando a aridez do cenário nos mínimos detalhes. Um campo seco em uma cidade do interior de Goiás, uma estrada deserta e um amontoado de lixo pelos cantos compõem um ambiente que instintivamente evitaríamos. Nesse espaço desolado, Totó (Ângelo Antônio) espera ansioso dentro do carro, até que avista um veículo se aproximando em alta velocidade. A narrativa se inicia com um confronto que pode ser fatal. Dele, desce Durval (Babu Santana), que, tomado pela fúria, parte para cima de Totó, agredindo-o violentamente. O motivo logo se esclarece: a amada de Totó, Luiza (Tuanny Araújo), o trocou por Durval. E é por isso que Totó se comprometeu a transformar a vida do inimigo em um verdadeiro inferno.

“Eu queria contar uma história sobre esses homens violentos, mas que também carregam uma fragilidade dentro de si e não conseguem lidar com ela. E ambientar isso dentro de um faroeste”, resume o diretor Erico Rassi, em entrevista à Bravo!.
No banco do passageiro do carro de Durval, Luiza assiste à cena, mas, sem paciência para a imaturidade dos dois homens, resolve ir embora. Essa é sua primeira e última aparição no filme. A partir daí, restam apenas lembranças e saudades dessa mulher que os abandonou. Esses minutos iniciais desencadeiam a trama de vingança de Totó, que, ressentido, vê no assassinato de Durval a única solução para sua dor. O plano, no entanto, precipita uma sucessão de eventos caóticos, envolvendo outros homens igualmente perdidos e mal-amados.

“Quando tivemos a ideia de tirar Luiza do roteiro, parecia que tudo se encaixava. Ela é quem decide sair desse universo do filme, como se todas as mulheres resolvessem não fazer parte daquele mundo. ‘Nós não queremos estar ali com esses homens embrutecidos. A gente se retira e deixa eles brigando, se matando do jeito deles.’ É uma ausência, mas, ao mesmo tempo, uma ausência-presença, porque a mulher é o disparo inicial da dramaturgia do filme. Tudo acontece em função dela”, explica Rassi.
A cada novo projeto, o cineasta se dedica a uma profunda investigação sobre o tema que irá abordar. Com Oeste Outra Vez, cuja concepção remonta a 2017, não foi diferente. A premissa básica do filme tem raízes no conto Duelo, de Guimarães Rosa, que narra uma história semelhante: Turíbio Todo descobre a traição da esposa com o ex-militar Cassiano Gomes e busca vingança. No entanto, ao tentar matar Cassiano, acaba atingindo seu irmão inocente. Cassiano, por sua vez, inicia uma perseguição incansável pelo sertão, transformando-se, alternadamente, em caçador e presa.

Foi então que Rassi fez uma imersão em algumas cidades do interior de Goiás, conhecendo a realidade local e realizando diversas entrevistas. Foram essas conversas que deram suporte ao roteiro.
“Esses homens têm muita dificuldade de romper esse ciclo, porque o ambiente em que estão chancela esse comportamento violento e rechaça qualquer tipo de fragilidade. Eles têm dificuldade de falar sobre seus sentimentos, de se relacionar com as mulheres e entre eles também. Acho que é muito difícil para eles conseguirem se completar, amadurecer, sem primeiro perceberem o próprio comportamento.”
Os protagonistas, que no longa vivem em conflito, selam uma trégua nos bastidores e refletem sobre como o perfil masculino retratado no filme se aproxima de suas próprias experiências. “O meu avô não ia ao médico. Foi três vezes, na quarta, morreu. Sabe? Meu pai também é assim, só procurou um médico quando a hemodiálise estourou. Ele tem 65 anos e nunca fez o exame de toque. Eu mesmo só vou ao médico se estiver saindo muito sangue ou se algo estiver torto. Essa ideia de ‘eu sou autossuficiente, eu que tenho que prover a família’… Não só pelo filme, mas a maturidade também vai dando essa liberdade, e os movimentos ao nosso redor influenciam.” comenta Babu.

Uma das grandes qualidades do filme está na força do elenco. Daniel Porpino, Adanilo e Rodger Rogério — vencedor do Prêmio de Melhor Ator Coadjuvante no Festival de Gramado — entregam excelentes performances. Enquanto isso, Antônio Pitanga, mesmo em uma participação breve, reafirma por que é considerado um dos grandes atores do país. Presente na entrevista, Pitanga trouxe uma reflexão profunda sobre a violência que permeia esses homens e como ela se intensifica diante da incapacidade deles de se conhecerem verdadeiramente.
“Acho que Oeste Outra Vez traz para o primeiro plano essa violência milenar. O homem ainda não entendeu a dimensão real da relação entre homem e mulher”, comenta Antônio. “Quando você é macho, homem por inteiro, 24 horas por dia, você vira uma pedra. O que o Érico está mostrando no filme é justamente isso: por que você não se enxerga? E, ao se enxergar, você percebe também o seu lado feminino. O homem ainda tem dificuldade de compreender o outro, de se perceber como ser humano por inteiro. Oeste traz essa leitura: a de que você pode se ver. E, ao se ver, entende o tamanho da brutalidade que navega dentro de cada um de nós — não precisa estar no sertão, no nordeste, no sul ou no leste. Você é esse homem bruto.”
Segundo ele, o medo da própria fragilidade é um dos maiores entraves para o amadurecimento de uma sociedade menos marcada pela guerra e pela destruição. “Esse homem se torna ainda mais bruto, mais violento. Ele briga, ele bebe, mas não entende o porquê. Há uma dificuldade enorme de se compreender, de romper esse ciclo.”

Daniel Porpino, que interpreta Antonio, um capanga contratado por Durval para eliminar Totó, complementa a ideia e traz sua própria experiência enquanto pai, refletindo sobre os impactos da educação na construção do comportamento masculino. “Estava pensando sobre essa formação do masculino. Por que tantas coisas que hoje reconhecemos como ruins se propagaram por tanto tempo? Acho que isso está ligado a um arquétipo masculino que vem de milênios, construído ao longo da história sobre o que é ser homem no mundo. Hoje percebo isso com mais clareza, até porque sou pai de dois meninos. Tenho um de 16 anos e outro de 12, e vejo que essa questão tem aspectos geracionais. Eles já estão sendo criados de outra forma, se relacionando desde cedo com mais presença feminina ao redor, sem aquela separação rígida de ‘coisas de menino’ e ‘coisas de menina’, que, na minha época, era muito forte.”

Para ele, esse tipo de conduta faz com que os gêneros se isolem, perpetuando certos comportamentos. “Você cresce vendo exemplos de atitudes que são consideradas ‘de homem’ e, naturalmente, as reproduz. Porque aprendemos muito na cópia, né? Percebemos um comportamento e o repetimos: ‘Se sou homem, devo agir assim’.”
Mas quando a fragilidade dos homens de Oeste Outra Vez é exposta, surge um ponto em comum, uma dor compartilhada entre eles: o abandono. Independentemente do desfecho dessa guerra, todos são perdedores, desajeitados, buscando consolo na bebida e nas canções de fossa que ecoam em todos os bares do interior. E que trazem um alívio cômico no meio da tensão. “Do ponto de vista da Luiza, por exemplo, ela não está abandonando, está se libertando, escolhendo sua autonomia, seu caminho. Mas, para eles, é como se tivessem sido deixados para trás”, conclui Daniel.